O Deus Dionísio e o Sagrado Kek

Malplenigi
4 min readApr 26, 2021

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No passado, Dionísio era considerado o deus e protetor dos loucos, mendigos, bêbados, insanos e lunáticos. Seu culto era praticado por meio de bebedeiras e orgias, por meio de heresias e vislumbres insanos de um futuro. Nietzsche, perto do ápice de sua loucura, previu que Dionísio estava se manifestando nele mesmo, era a nova face de si e do mundo.

O mesmo Nietzsche corretamente previu em A Vontade de Poder o advento e o reinado do niilismo por 200 anos. Dois séculos de niilismo em todas as esferas da sociedade, em todas suas formas. Tanto no âmbito pessoal do indivíduo quanto no âmbito político e coletivo. Desde os pensamentos até os costumes, desde os atos pessoais até os políticos, desde as artes e cultura até as formas e tratos sociais e existenciais. Dionísio é a loucura, é a obscenidade profana que atrai a todos os humanos, é o deus-furacão irreconhecível e indescritível. Dionísio somos nós e ao mesmo tempo é algo além de nós.

O culto de Dionísio manifestava-se de forma mais ou menos organizada na Grécia Antiga, mas hoje possui novas formas, a maioria sutis e pouco interessantes, quase automáticas. Outras mais intensas, porém, subliminares. Afinal, o que é a cybercultura dos memes se não uma expressão cada vez mais escancarada de uma insanidade tragicômica em relação ao mundo, a sociedade e nossa era? O culto ao Kek não é nada mais do que um culto a uma das faces do deus louco. Os seguidores do Kek, são, em sua maioria, frutos de fóruns como o 4chan, e, portanto, possuem ideias e concepções diferentes… radicais, estranhas, loucas. A sátira e a ironia foram identificadas por Nietzsche como as características dos seguidores de Dionísio, e, hoje, não são estas as duas características principais dos memes? Do 4chan? A própria associação em parte irônica em parte séria ao Joker após o lançamento do filme de mesmo nome em 2019, é uma prova sutil desse culto dionisíaco. Não à toa, os protestos que tomaram boa parte do mundo, desde a Europa Ocidental até as Américas no ano do lançamento do filme, tiveram como símbolo dos protestos o personagem icônico: um palhaço do caos, um homem que ri mesmo estando triste, um homem não revoltado, mas sim enojado.

The chaos existed without the light, and thus Kek came to represent this darkness. He also symbolized obscurity, the kind of obscurity that went with darkness, and night.

Praise the Kek!

A loucura dionisíaca assumindo a forma de Kek, o deus caótico da internet, com mil e um seguidores com mil e uma faces, é uma marca presente em todas as gerações cuja cultura é manifestada e influenciada pelo ciberespaço. Não só na ironia e no sarcasmo, mas também no ato político. Ter ideias iliberais, insanas e profanas é um ato político e dionisíaco, e qualquer ação fora do campo das ideias deve ser essencialmente uma heresia política. Num caso recente, e emblemático, temos o ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. Todos os homens e mulheres presentes na invasão eram essencialmente seguidores de Kek. O conheciam, frequentavam suas ágoras virtuais, traziam expressões de seu culto e fizeram o que deveria ser feito.

Quando atacaram o Capitólio não se preocuparam em vandaliza-lo, mas sim em dançar em meio às ruínas. Muitos tiraram fotos do momento, em poses irônicas, zombando do poder, zombando da ordem. A internet reagiu com memes e risadas, somente os débeis seguidores de Apolo reagiram horrorizados, o que por si só, tornou as coisas ainda mais engraçadas. Invadir um símbolo do poder, ocupar os assentos onde a corrupção acontece, deixar os ditos arautos iluminados aterrorizados e profanar o altar sujo do mundo foi um ato dionisíaco, foi uma manifestação da desordem, do riso em meio ao caos. Foi um culto, um êxtase coletivo a Kek e a Dionísio, e estará para sempre marcado na História.

A onda de derrocada da democracia liberal pelo mundo desencadeada entre o começo dos anos 2010 até o presente é uma manifestação de uma guerra maior, uma guerra espiritual, entre a enrijecida ordem de Apolo e a subversão profana de Dionísio. A democracia liberal não está exatamente caindo de podre, tampouco sofre um assalto organizado por arautos e gurus como a mídia esperneia histericamente, mas sim pelo desprezo irônico. Pelo riso frente ao desespero das rachaduras no alicerce do Senado. Além da caverna não existe luz, mas também não existem trevas. Existe um sol obscuro e um mundo em chamas. Quando se abre os olhos, se começa a rir. Quando se começa a rir, se assume os perigos da heresia, a dança louca da vida começa. Os seguidores de Dionísio irão dançar histericamente ao redor das chamas da desordem e da destruição do Ocidente, da ordem liberal, do cadáver podre de Apolo. Estão por todos os locais, em todos os lugares do mundo e da sociedade. Cada partido desacreditado, cada político assassinado (tanto no sentido figurado quanto no literal), cada corporação incendiada, cada delegacia saqueada, cada policial abatido, cada banco depredado, cada barricada erguida, cada molotov atirado, cada parlamento fechado, cada ministro amedrontado, deve ser devidamente comemorado e louvado.

Apolo reprime tateando com um bastão o escuro, batendo até mesmo nos seus. Mas tudo que ouve em meio a escuridão é a risada insana de seu algoz.

Há um incêndio no interior de um teatro. O palhaço sobe ao palco para avisar o público; eles pensam que é uma piada e aplaudem. O palhaço repete e é aplaudido com mais entusiasmo. É como o mundo chegará ao seu fim: sendo aplaudido por testemunhas que acreditam que tudo não passa de uma piada.
-Soren Kierkegaard

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